Sábado, 6 de Novembro de 2010

Hipotermia (II)

Hoje não. Estou mesmo cansada. Não venhas hoje com os teus problemas. Hoje não. Deixa-me encostar a cabeça e enroscar-me na cama, que hoje choveu um bocadinho. Há dias em que me esqueço do guarda-chuva. Molhei o cabelo, estou com frio. Não venhas puxar a minha manta para cobrir os teus problemas. E não finjas esse calor de bruma. Olha que eu não acredito. Hoje não acredito em ti.

 

Choveram cartas. E recados perdidos; encontrei-os, não sei onde, mas deve ter sido onde os deixaste. Uma brecha na perda ou na pedra? Sai da minha cabeça, sai da minha cama. Hoje não, não tenho manta. Não tenho tempo e não tenho vida para ti, nem para ninguém. Tenho para mim e é escassa. Quero tempo para ler as coisas para as quais quero ter tempo e depois, quero ter tempo para não ter tempo. Mas isso, só depois, só muito depois do tempo. Quero ter tempo e ter a mão para escrever, não os teus problemas, não o possessivo da segunda pessoa, singular, não o teu possessivo de intermitências. Quero ter o tempo daquele pretérito imperfeito. Fotografias de pôr-de-sol (ou uma mentira que o valha) são sépias desbotadas, onde o sangue escorreu para o fundo da gaveta. A madeira absorveu e já não há provas. Pelo menos deixaste de ser mentiroso.

 

(A língua portuguesa irrita-me nesta dimensão de atribuir um género ao tu. E se eu estiver cansada de uma ela? Ou de um ele e de uma ela? E se forem tantos que já não sei contar nem definir? Se for um híbrido? E hoje não quero escolher um alvo, vou atirar em todas as direcções.)

 

Hoje quero a manta só para mim. Estive muitas noites ao frio. Hoje não venhas. E só te digo isto porque sei que não vens. O teu calor faz-te cego ao meu frio. 

música: Laços - Toranja
publicado por MB às 23:59
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